A Descoberta – Vale Literário

valeSmall Tenho um projeto literário com mais três amigos escritores, chamado Vale Literário. Neste projeto, propomos temas-desafios e cada um tem que escrever um texto sobre o tema. O primeiro destes foi “A Descoberta”, e publico abaixo o meu texto. Caso queira ver o texto dos outros participantes, acesse o site do nosso projeto: www.valeliterario.com.br. Aguardamos seus comentários!.. 🙂

A Descoberta

Leandro Soriano Marcolino

Abandonara a mulher e os filhos. Sua pele ainda ardia com as unhadas. Pegara poucas roupas, a chave do carro, uma latinha de cerveja, e agora dirigia sem rumo para uma cidade qualquer.

Há anos sentia uma certa angústia. Aquela sensação de que poderia ser feliz. Precisava apenas de pequenos prazeres. Pequenos prazeres, como tomar uma cerveja, comer uma boa refeição, correr com um cachorro, assistir tranquilo à um jogo de futebol. Mas como era tudo tão difícil naquela vida familiar, às obrigações, os deveres, os pedidos tão difíceis de recusar. A esposa não gostava que bebesse, não queria ter cachorros, seus filhos não o deixavam um minuto em paz. E, no trabalho, sua consciência e seu chefe não o deixavam relaxar. Faltava-lhe um tempo para sí, um tempo para curtir seus pequenos prazeres. Sentia uma tremenda necessidade de estar só. Mas teria suportado tudo aquilo, se não fossem as brigas. As brigas que foram se tornando diárias, os berros, os ataques. Dia após dia, cansado do trabalho, doido para deitar no sofá e ver televisão, ainda tinha que desperdiçar seu tempo gritando e discutindo.

Naquela última noite, ela não o deixara beber. Brigaram na cozinha, em frente dos filhos. Ele estendia à mão em direção a lata, ela a retirava e batia em seu braço. Furioso, levantou-se com os punhos cerrados, tão distraído por sua raiva e a vontade de esmurrá-la imediatamente que não percebeu o chute no estômago que o fez dobrar-se em dois. As crianças choravam, assustadas.

Furioso, pegou a latinha de cerveja, foi até o quarto, tirou a mala do armário e jogou lá dentro roupas escolhidas aleatoriamente. A mulher, desesperada, gritava para que parasse, o segurava, arranhava suas costas.

Parou o carro no estacionamento de um supermercado. A latinha que trouxera já estava vazia. Sentia a boca cheia de saliva, já preparada para o que lhe aguardava. Gastou bons minutos escolhendo entre diversas marcas de cerveja, vinhos, cachaças e whiskys. Sentia falta de seus filhos, mas era uma falta que emanava distante, como se fossem criaturas pertencentes ao mundo de seus sonhos. Parecia ter-se separado de sua própria vida, e agora estava pronto para nascer de novo e ser feliz. Chegou a admirar algumas das mulheres que o rodeavam, especialmente aquela loira de bermuda curta e camisa regata, que deliciosamente escolhia vinhos. Mas sentia uma certa aversão à beleza, era atraído e ao mesmo tempo repelido; a beleza causava-lhe uma admiração repleta de medos e inseguranças, cheia daquela certeza de que tudo o que queria era estar só.

Colocou as bebidas no porta-malas do carro e voltou a dirigir. Sentia prazer na direção, mais um de seus pequenos prazeres, especialmente quando o porta-malas estava cheio de bebidas. Fez questão de não ligar o rádio, escutava apenas o vento entrando pela janela e os outros carros que velozmente ultrapassava. Algumas vezes pensava na loira de regata abaixando para escolher vinhos. Algumas vezes pensava em seus filhos, suas duas lindas garotinhas, que adoravam montar em suas costas. Continuava a dirigir, podia ter parado naquela cidade, mas não, queria a outra, queria a mais distante, queria afastar-se de sua antiga vida. Queria poder beber uma cerveja e ser feliz.

As lembranças insistiam em persegui-lo, mas sempre com aquele sabor de sonhos. Lembrava-se de sua mulher deitada, nua, em sua lua de mel. A beleza, fascinante e cruel, que o prendia e o sufocava ludibriando-o com o prazer. A beleza, que o atraía, mas com aquela estranha sensação de repulsão. Lembrava-se do dia em que suas filhas nasceram, rosas, sangrentas, feias. O choro insuportável em seus ouvidos. Mas aquela certeza curiosa de que de alguma forma as amaria.

Olhou o horário no rádio. Haveria um jogo esta noite, transmitido de outro país. Sorriu, poderia vê-lo à tempo. Poderia vê-lo sem ser incomodado, sem ninguém que se opusesse à sua vontade, sem ninguém para dizer que queria atenção por favor não veja televisão esta noite, sem ninguém para dizer você está bebendo demais por favor não beba esta noite. Poderia ver o jogo e saborear a cerveja que o esperava ansiosa no porta-malas. Por que a mulher cismara em não deixá-lo beber? Qual era o problema, afinal? Era de noite, já tinha trabalhado, já tinha cumprido com suas obrigações, por que não podia aproveitar um pouquinho sua vida?

Mas aquela noite fora pior. Ela estava mais nervosa. Quando foi a última vez que menstruara? Que dia era hoje… Ah!, sim, trinta e um de agosto, hoje completavam dez anos de casado………… Dez anos de casado………… Suas lindas garotinhas rindo, montadas em suas costas, enquanto andava pelo parque………… Problemas!.. Problemas!.. Não sabia é como aguentara tanto tempo com aquela mulher. Queria era comemorar o primeiro dia da sua solidão. Pensou que jamais se esqueceria daquela data, o primeiro dia em que finalmente poderia viver só.

Dirigiu pelo centro de uma cidade qualquer, procurando um hotel. Já era quase hora do jogo. Achou um apart-hotel bacana, sala, cozinha e banheiro. Podia até morar ali por um tempo. Não precisava realmente ir à empresa, só ia para se concentrar melhor no trabalho mesmo. Bastava enviar sua parte para o chefe, se fizesse tudo direitinho pouco importava para o chefe onde estava.

As bebidas pesavam em seu braço, mas era um grande prazer carregá-las. Sua boca já estava molhada de expectativa. Fez ansioso o registro do quarto, pegou as chaves e subiu no elevador. Era tudo maneiro, o elevador até falava o número do andar, dava boa noite. Abriu a porta do apartamento. A sala tinha um sofá bonito, de couro, com lugar para duas pessoas. Bem, teria que usá-lo sozinho, pensou, com um sorriso irônico no rosto.

Colocou a mala no quarto. Olhou para a cama de casal, grande, espaçosa, que teria que aproveitar sozinho. Bem, teria muito mais espaço para se espreguiçar. Lembrou-se imediatamente da sua mulher deitada, nua, em sua lua de mel. A beleza, a perigosa beleza que o chamava. Tentou afastar os pensamentos, e correu para a sala.

Foi colocar as bebidas na cozinha. Seria uma pena ter que beber a cerveja já quente… Colocou-as no freezer, quem sabe conseguiria tê-las gelada para o segundo tempo?.. Resolveu abrir a geladeira, curioso. Meu Deus! O apart-hotel mantinha um frigobar! Que sorte! Um grande sorriso de satisfação estampou-se em seu rosto. Escolheu a mais gelada das cervejas. Estava excitado, em poucos instantes poderia aproveitar o seu grande momento de prazer.

Sentou-se no sofá, com a lata de cerveja gelada queimando em suas mãos. Ligou a televisão, ansioso pelo jogo de futebol que começaria em breve. Finalmente, poderia vê-lo sem ser incomodado, sem ter que aguentar as reclamações e os lamentos, a mulher pedindo para parar de beber. Nenhuma criança chorando em seus ouvidos, nenhuma mulher pedindo serviços que pouco importavam, falando mal do jogo, reclamando de problemas que pouco afetavam a sua vida. A mulher nua deitada de costas na cama de casal, a beleza, a beleza que atraía e repelia, a beleza que o chamava e o fazia escapar. As garotinhas rindo, montadas em suas costas, enquanto pulava pelo parque. Rindo, rindo, rindo… Abriu a lata gelada de cerveja, já sentindo-a descer quente por sua garganta. E foi naquela expectativa máxima de prazer, pronto para saborear livre o líquido da cevada fermentada e perder-se na emoção do jogo prestes a desfilar em frente de seus olhos, que ele finalmente percebeu toda a tristeza de sentir-se só.

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