Arquivo mensais:junho 2014

Peixe – Vale Literário

valeSmall Mais um conto do projeto Vale Literário: Peixe. Neste eu tentei um texto mais estilo crônica, com toques de humor. Lembre-se de que você pode ver todos os textos na página do projeto, em www.valeliterario.com.br.

Peixe

Leandro Soriano Marcolino

– E você, Teófilo, o que quer ser quando crescer?

– Eu quero ser um peixe.

A professora ficou estática. A sala, no mais completo silêncio. Até que finalmente ela esboçou um meio sorriso:

– Teófilo, meu querido, você não pode ser um peixe. Estamos falando de profissões, como bombeiro, policial, médico… Lembra do que discutimos, querido? Você tem que escolher alguma coisa assim, entendeu?

A professora não esperou Teófilo responder. Não podia correr o risco. Já passou para a próxima aluna.

– E você, Aninha, o que quer ser quando crescer?

– Eu quero ser médica, titia.

Sorriu, aliviada.

– Que legal, Aninha!.. Agora, turma, peguem os seus lápis de colorir, e cada um tem que desenhar o que vocês querem ser quando crescer. Quem quer ser médico, tem que desenhar um médico trabalhando. Quem quer ser bombeiro, tem que desenhar um bombeiro trabalhando. Entenderam? Caprichem bastante, porque nós vamos expor seus desenhos para a escola inteira! Entenderam? Alguém tem alguma pergunta?

Ninguém perguntou nada. As crianças, animadas, já pegavam os seus lápis e rabiscavam, coloriam, gritavam, mostravam seus desenhos uma para as outras. A professora andava pela sala e via surgindo policiais controlando o trânsito, garis limpando a rua, bombeiros salvando gatos, motoristas de taxi costurando o trânsito, detetives seguindo pistas, até mesmo mágicos e malabaristas. Elogiava os alunos, e sorria, satisfeita por ter sugerido essa ideia para a direção da escola, tinha certeza de que os pais iriam amar a exposição na semana das profissões.

Passou pela mesa de Teófilo. Gelou. Parou de sorrir. O garoto, completamente compenetrado, desenhava um lindo e detalhado peixe. Era um peixe dourado grande, grande e gordo, com olhos esbugalhados, as escamas eriçadas, as gueiras abertas e vermelhas. Um vermelho forte, vivo. Nadava em direção à um conjunto de algas, talvez para se esconder de algum predador. O desenho era tão real, tão detalhado, tão bem feito, incrível para um garoto daquela idade. Teria ficado muito orgulhosa, se não estivesse desesperada com aquela situação. Como é que iria expor aquilo para a escola inteira, durante a semana das profissões? O que iriam pensar dela?

– Teófilo, meu querido – tentou sorrir. – O que é que você pensa que está fazendo, meu amor?

– Uai, fêssora, cê pediu pra gente desenhar o que quer ser quando crescer. Eu quero ser um peixe.

E o diabo do menino ainda repetiu, com toda a clareza do mundo:

– Eu quero ser um peixe quando eu crescer, professora.

A cabeça dela trabalhava rapidamente. Será que daria para expor os desenhos de todos os alunos, menos o de Teófilo? Será que os pais de Teófilo aceitariam a situação? E se expusesse o desenho de Teófilo, o que os outros pais iriam pensar? Será que teria que dar um jeito de cancelar a exposição inteira?

– Teófilo, amor de minha vida, você não poderia desenhar outra coisa? Por que você não desenha um policial, um bombeiro, um motorista de fórmula um? Não seria legal um policial lutando contra os bandidos, salvando as mocinhas? Não é emocionante? Pode até ser um super-herói, um batman, até isso serve, meu amor.

– Não, fêssora, eu quero ser um peixe.

– Nossa, legal, acho que quero ser um peixe também.

– Não, Pedrinho, por favor, não. Continue desenhando o mágico, meu filho, por favor.

Desistiu. A situação estava ficando cada vez pior. Já estava imaginando uma série de peixes expostos pela escola, na semana das profissões. Era melhor deixar para lá, esconder o desenho de Teófilo e explicar para os pais do menino depois. Talvez fosse a melhor opção, talvez Teófilo estivesse precisando de ajuda.

**

Virava de um lado para o outro na cama. Não conseguia dormir.

– O que foi, querida? Para de ficar mexendo tanto desse jeito.

– Desculpe… Não sei, eu… estou preocupada com um aluno…

– O que aconteceu?

– Ele quer ser um peixe.

O marido riu. Gargalhava. Chegou a chorar de tanto rir.

– Não se preocupe, querida, é só bobagem de criança.

Sentiu vergonha da sua preocupação. É, só bobagem de criança, é claro. Fechou os olhos, e adormeceu.

**

– Mamãe, mamãe!..

– O que foi, Clara? Você está tão pálida!

– O Teófilo, mamãe! O Teófilo sumiu!

**

Conferia a regulagem do cilindro de ar comprimido. Mesmo com tantos anos de profissão, ainda se sentia nervoso naqueles breves instantes antes do mergulho. Sentia medo, mas era um medo misturado com orgulho. Não tinha sido fácil se tornar um mergulhador profissional. Riam dele desde criança, muitos insistiam que mergulho não era uma profissão, mas mantivera firme o seu objetivo.

O cilindro tinha 2.200 litros de ar comprimido. Se perguntava se seria tempo suficiente. Iria fazer um mergulho profundo, o que gastaria o ar mais rapidamente devido a pressão. Não queria nem imaginar o que aconteceria se o ar acabasse enquanto ainda estivesse lá embaixo, nas profundezas. Muitas vezes sentia esse medo de entrar no mar e nunca mais voltar. Principalmente nesses breves instantes antes do mergulho.

Colocou o capuz de borracha e ajustou a fita para fixar a lanterna. Vestiu a máscara transparente. Em breve não poderia mais respirar o ar que todos nós respiramos. Em breve, teria que respirar embaixo d’água como um peixe. Era uma capacidade fascinante, e sempre se admirava ao pensar sobre isso, mesmo com tantos anos de profissão: um homem que podia respirar como um peixe e literalmente viver embaixo d’água. Vestiu os pés de pato, colocou o pesado tubo de ar comprimido nas costas, conectou-o à máscara. Já não parecia mais um ser humano. Riam dele quando criança, riam dele e o chamavam de homem-peixe.

Terminado todos os preparativos, sua ansiedade diminuía. Já mais seguro de sua própria sobrevivência, agora que sabia que todo o esquipamento estava devidamente ajustado, se concentrava no objetivo que tinha em frente. Havia um mistério naquela região, um mistério que tinha que desvendar. Sim, é claro que as fotos lhe trariam um bom dinheiro, mas de fato o que mais o motivava era uma grande curiosidade de ver com seus próprios olhos se a lenda era verdadeira. Sempre fora curioso, e fascinado pela beleza e mistérios escondidos no fundo do mar. Riam dele como se fora louco, riam dele, mas agora iria mostrar para todos eles.

O barco parou no local planejado. Seu coração batia forte novamente. Respirou fundo, tinha que se acalmar. Se continuasse nervoso daquele jeito iria consumir muito oxigênio e precisava de um longo tempo no fundo do mar. Não iria encontrá-lo nas regiões rasas, tinha que ir para as profundezas. Teria que lidar com elevados níves de pressão.

Pulou. Ligou o ar comprimido. Agora podia respirar como um peixe, ou pelo menos era a melhor aproximação possível sem as gueiras. O mar ia se desvendando diante de seus olhos, primeiro viu peixes pequenos que rapidamente se afastavam quando ele se aproximava. Chegou mais perto do fundo, e viu belos corais multicoloridos, uma de suas grandes paixões no início de sua profissão. Agora já se interessava mais por coisas misteriosas, pelo desconhecido, ao invés de simplesmente buscar a beleza em seus mergulhos. Não só por sua própria curiosidade, mas era também mais lucrativo. Tinha que lutar pela sobrevivência, como qualquer outro animal.

Via agora os mais diversos tipos de peixe. Borboletas amarelos, com seu corpo fino, alongado e pequenas nadadeiras, brincavam entre as algas do coral. Às vezes era difícil acompanhar seus movimentos, se perdiam entre as algas também amarelas. Já os Borboletas listrados nadavam acima das algas e podiam ser mais facilmente observados. Nadavam rápido, porém, talvez procurando um lugar onde poderiam ficar menos expostos. Mais para frente viu um Garoupa-gato, com seu corpo amarronzado cheio de pintas, quase como se fosse um leopardo do mar. Seus colegas achavam a comparação engraçada, mas não conseguia deixar de pensar em um leopardo sempre que se deparava com aquela espécie. Aquela região era muito rica e colorida, havia também Jaguareçás, Garoupinhas, Linguados e os avermelhados Olho-de-cão.

Mas não podia perder tempo. Tinha que nadar em direção às profundezas. Via cada vez menos peixes à medida em que se afastava, e a iluminação diminuía. Começou a sentir medo. Não estava acostumado com mergulhos tão profundos. Ligou a lanterna, mas ela iluminava apenas uma limitada região em sua frente, enquanto tudo em volta permanecia na mais completa escuridão. Tentava retomar a calma, sentia sua respiração acelerada que diminuiria o tempo disponível para encontrar a criatura. Ativou a câmera. Será que a luz iria afastá-lo? Torcia para que não…

Os peixes agora eram menos coloridos. Ninguém precisava de cor naquele nível de profundidade, com tão pouca luz. A beleza dava lugar ao desconhecido, ao mistério. Via grupos de Peixes-lanterna nadando ao seu redor, com seus pequenos corpos que brilhavam como se fossem estrelas distantes. Algumas vezes seu feixe de luz iluminava assustadores Peixes-víbora, com o corpo fino como se fossem agulhas, mas a boca cheia de grandes presas. Via também peixes sem olhos, criaturas grotescas que não precisavam da luz para se orientar.

Será que iria encontrá-lo? Não teria muito tempo naquele nível de pressão, precisava de sorte. Conferiu o nível do ar comprimido: 400 litros. Tentava se manter calmo. Mas como era difícil se controlar. Precisava de ar suficiente para voltar, senão ficaria preso ali para sempre, preso no fundo do oceano como um homem-peixe. Finalmente, teve uma ideia. Apagou a lanterna. Viu-se na mais completa escuridão, exceto por poucos peixes que brilhavam distantes. Acendeu-a por um longo tempo, apagou de novo. Escuridão, a mais completa escuridão. Acendeu por um longo tempo mais duas vezes. Em seguida acendeu por um tempo curto, um tempo longo, dois curtos. Um curto e depois um longo. Esperou alguns minutos, nervoso. Nada. Será que a lenda era verdadeira? Existiria realmente tal criatura?

Tentou novamente: três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Nada. Talvez ele não existisse, afinal. Continuou nadando, sempre repetindo a mesma sequência. Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Talvez a luz o assustasse. Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Não era possível que não iria dar em nada… Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Não queria desistir. Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Mas seu tempo já estava mais do que esgotado, (três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo) se não retornasse ficaria preso eternamente no fundo do oceano.

Mas ele apareceu. Viu primeiro o seu rosto no feixe de luz: os olhos esbugalhados, a protuberância no lugar do nariz, a boca cheia de dentes, as gordas bochechas. Suas orelhas já estavam completamente deformadas, mas podia ver um pequeno buraco na lateral direita de sua cabeça. O mergulhador tremeu, de medo ou de excitação. Via agora o seu pescoço, o pescoço com as gueiras abertas e vermelhas. Suas escamas estavam eriçadas, como se estivesse arrepiado. Talvez ele também estivesse assustado de ver novamente um ser humano. Há quanto tempo vivia afastado, no fundo do oceano? Há quanto tempo não via ninguém? Podia observar agora seu corpo: ele era grande, gordo, e vermelho. Seus braços eram como longas nadadeiras, que terminavam em cinco pequenos filamentos que se movimentavam com a corrente de água. Um desses filamentos se mantinha em oposição aos outros, como um polegar. Talvez ainda fosse capaz de agarrar e manipular objetos. Talvez. Mas agora eles balançavam livres na água. Via suas pernas, transformadas em uma longa barbatana caudal. Ao contrário de um peixe comum, as movia de forma independente, como uma pessoa nadando crawl embaixo d’água. Ou como um mergulhador. Como um mergulhador. Riam dele, desde criança, riam dele e o chamavam de homem-peixe. Riam dele como se fora louco.

As fotos. Não podia esquecer das fotos. Tentava destampar a câmera, nervoso, não conseguia desencaixar a tampa da lente. Sempre conseguia apertar os dois botões laterais da tampa com tanta facilidade, nunca imaginara que se tornariam um problema. Quando finalmente a tampa soltou, percebeu que ele já havia desaparecido, fugira como um garotinho tímido e assustado. Riam dele, desde criança.

A Descoberta – Vale Literário

valeSmall Tenho um projeto literário com mais três amigos escritores, chamado Vale Literário. Neste projeto, propomos temas-desafios e cada um tem que escrever um texto sobre o tema. O primeiro destes foi “A Descoberta”, e publico abaixo o meu texto. Caso queira ver o texto dos outros participantes, acesse o site do nosso projeto: www.valeliterario.com.br. Aguardamos seus comentários!.. 🙂

A Descoberta

Leandro Soriano Marcolino

Abandonara a mulher e os filhos. Sua pele ainda ardia com as unhadas. Pegara poucas roupas, a chave do carro, uma latinha de cerveja, e agora dirigia sem rumo para uma cidade qualquer.

Há anos sentia uma certa angústia. Aquela sensação de que poderia ser feliz. Precisava apenas de pequenos prazeres. Pequenos prazeres, como tomar uma cerveja, comer uma boa refeição, correr com um cachorro, assistir tranquilo à um jogo de futebol. Mas como era tudo tão difícil naquela vida familiar, às obrigações, os deveres, os pedidos tão difíceis de recusar. A esposa não gostava que bebesse, não queria ter cachorros, seus filhos não o deixavam um minuto em paz. E, no trabalho, sua consciência e seu chefe não o deixavam relaxar. Faltava-lhe um tempo para sí, um tempo para curtir seus pequenos prazeres. Sentia uma tremenda necessidade de estar só. Mas teria suportado tudo aquilo, se não fossem as brigas. As brigas que foram se tornando diárias, os berros, os ataques. Dia após dia, cansado do trabalho, doido para deitar no sofá e ver televisão, ainda tinha que desperdiçar seu tempo gritando e discutindo.

Naquela última noite, ela não o deixara beber. Brigaram na cozinha, em frente dos filhos. Ele estendia à mão em direção a lata, ela a retirava e batia em seu braço. Furioso, levantou-se com os punhos cerrados, tão distraído por sua raiva e a vontade de esmurrá-la imediatamente que não percebeu o chute no estômago que o fez dobrar-se em dois. As crianças choravam, assustadas.

Furioso, pegou a latinha de cerveja, foi até o quarto, tirou a mala do armário e jogou lá dentro roupas escolhidas aleatoriamente. A mulher, desesperada, gritava para que parasse, o segurava, arranhava suas costas.

Parou o carro no estacionamento de um supermercado. A latinha que trouxera já estava vazia. Sentia a boca cheia de saliva, já preparada para o que lhe aguardava. Gastou bons minutos escolhendo entre diversas marcas de cerveja, vinhos, cachaças e whiskys. Sentia falta de seus filhos, mas era uma falta que emanava distante, como se fossem criaturas pertencentes ao mundo de seus sonhos. Parecia ter-se separado de sua própria vida, e agora estava pronto para nascer de novo e ser feliz. Chegou a admirar algumas das mulheres que o rodeavam, especialmente aquela loira de bermuda curta e camisa regata, que deliciosamente escolhia vinhos. Mas sentia uma certa aversão à beleza, era atraído e ao mesmo tempo repelido; a beleza causava-lhe uma admiração repleta de medos e inseguranças, cheia daquela certeza de que tudo o que queria era estar só.

Colocou as bebidas no porta-malas do carro e voltou a dirigir. Sentia prazer na direção, mais um de seus pequenos prazeres, especialmente quando o porta-malas estava cheio de bebidas. Fez questão de não ligar o rádio, escutava apenas o vento entrando pela janela e os outros carros que velozmente ultrapassava. Algumas vezes pensava na loira de regata abaixando para escolher vinhos. Algumas vezes pensava em seus filhos, suas duas lindas garotinhas, que adoravam montar em suas costas. Continuava a dirigir, podia ter parado naquela cidade, mas não, queria a outra, queria a mais distante, queria afastar-se de sua antiga vida. Queria poder beber uma cerveja e ser feliz.

As lembranças insistiam em persegui-lo, mas sempre com aquele sabor de sonhos. Lembrava-se de sua mulher deitada, nua, em sua lua de mel. A beleza, fascinante e cruel, que o prendia e o sufocava ludibriando-o com o prazer. A beleza, que o atraía, mas com aquela estranha sensação de repulsão. Lembrava-se do dia em que suas filhas nasceram, rosas, sangrentas, feias. O choro insuportável em seus ouvidos. Mas aquela certeza curiosa de que de alguma forma as amaria.

Olhou o horário no rádio. Haveria um jogo esta noite, transmitido de outro país. Sorriu, poderia vê-lo à tempo. Poderia vê-lo sem ser incomodado, sem ninguém que se opusesse à sua vontade, sem ninguém para dizer que queria atenção por favor não veja televisão esta noite, sem ninguém para dizer você está bebendo demais por favor não beba esta noite. Poderia ver o jogo e saborear a cerveja que o esperava ansiosa no porta-malas. Por que a mulher cismara em não deixá-lo beber? Qual era o problema, afinal? Era de noite, já tinha trabalhado, já tinha cumprido com suas obrigações, por que não podia aproveitar um pouquinho sua vida?

Mas aquela noite fora pior. Ela estava mais nervosa. Quando foi a última vez que menstruara? Que dia era hoje… Ah!, sim, trinta e um de agosto, hoje completavam dez anos de casado………… Dez anos de casado………… Suas lindas garotinhas rindo, montadas em suas costas, enquanto andava pelo parque………… Problemas!.. Problemas!.. Não sabia é como aguentara tanto tempo com aquela mulher. Queria era comemorar o primeiro dia da sua solidão. Pensou que jamais se esqueceria daquela data, o primeiro dia em que finalmente poderia viver só.

Dirigiu pelo centro de uma cidade qualquer, procurando um hotel. Já era quase hora do jogo. Achou um apart-hotel bacana, sala, cozinha e banheiro. Podia até morar ali por um tempo. Não precisava realmente ir à empresa, só ia para se concentrar melhor no trabalho mesmo. Bastava enviar sua parte para o chefe, se fizesse tudo direitinho pouco importava para o chefe onde estava.

As bebidas pesavam em seu braço, mas era um grande prazer carregá-las. Sua boca já estava molhada de expectativa. Fez ansioso o registro do quarto, pegou as chaves e subiu no elevador. Era tudo maneiro, o elevador até falava o número do andar, dava boa noite. Abriu a porta do apartamento. A sala tinha um sofá bonito, de couro, com lugar para duas pessoas. Bem, teria que usá-lo sozinho, pensou, com um sorriso irônico no rosto.

Colocou a mala no quarto. Olhou para a cama de casal, grande, espaçosa, que teria que aproveitar sozinho. Bem, teria muito mais espaço para se espreguiçar. Lembrou-se imediatamente da sua mulher deitada, nua, em sua lua de mel. A beleza, a perigosa beleza que o chamava. Tentou afastar os pensamentos, e correu para a sala.

Foi colocar as bebidas na cozinha. Seria uma pena ter que beber a cerveja já quente… Colocou-as no freezer, quem sabe conseguiria tê-las gelada para o segundo tempo?.. Resolveu abrir a geladeira, curioso. Meu Deus! O apart-hotel mantinha um frigobar! Que sorte! Um grande sorriso de satisfação estampou-se em seu rosto. Escolheu a mais gelada das cervejas. Estava excitado, em poucos instantes poderia aproveitar o seu grande momento de prazer.

Sentou-se no sofá, com a lata de cerveja gelada queimando em suas mãos. Ligou a televisão, ansioso pelo jogo de futebol que começaria em breve. Finalmente, poderia vê-lo sem ser incomodado, sem ter que aguentar as reclamações e os lamentos, a mulher pedindo para parar de beber. Nenhuma criança chorando em seus ouvidos, nenhuma mulher pedindo serviços que pouco importavam, falando mal do jogo, reclamando de problemas que pouco afetavam a sua vida. A mulher nua deitada de costas na cama de casal, a beleza, a beleza que atraía e repelia, a beleza que o chamava e o fazia escapar. As garotinhas rindo, montadas em suas costas, enquanto pulava pelo parque. Rindo, rindo, rindo… Abriu a lata gelada de cerveja, já sentindo-a descer quente por sua garganta. E foi naquela expectativa máxima de prazer, pronto para saborear livre o líquido da cevada fermentada e perder-se na emoção do jogo prestes a desfilar em frente de seus olhos, que ele finalmente percebeu toda a tristeza de sentir-se só.