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Bondade – Um conto de “O Grande Livro das Pessoas sem Nome”

– É um assalto.

As palavras atravessaram o ouvido do motorista como se fossem armas. Era um assalto. Parecia inacreditável, mas as exclamações de medo e surpresa dos passageiros confirmavam que era real. Sabia que todos os dias corria o risco de ser assaltado, mas essa possibilidade de alguma forma sempre soara distante, algo que poderia acontecer com qualquer um, mas que por algum motivo inexplicável jamais aconteceria com ele. Mas se enganara. Claro que esse sentimento de segurança não foi fruto de nenhuma reflexão racional, era apenas aquele falso sentimento que todos precisamos ter para que consigamos sobreviver neste mundo onde a cada instante a morte está pronta para mostrar seus sedentos e afiados dentes caninos.

Um dos assaltantes exibia a arma, símbolo de sua força e poder. O metal frio parecia colado em sua mão, como se fizesse parte de seu próprio corpo aquele objeto que não tinha outra finalidade além de subjugar e destruir. Chegava a ser difícil dizer se era o homem que empunhava o revólver, ferramenta de seu assalto, ou se era o revólver que controlava o homem, como um parasita controlando um estúpido hospedeiro. Mas, independente de quem vencia aquele jogo de poder, era o assaltante que abria a boca e requisitava relógios, tênis, dinheiro, celulares, colares e brincos que poderiam ter algum valor que não fosse meramente estético; além de qualquer objeto, enfim, que pudesse valer algum dinheiro, objetivo único e final de todo o seu trabalho e esforço. Enquanto isso, o outro assaltante mantinha uma arma colada à pele do motorista. O local coçava, como se reagisse a um corpo estranho, mas nada poderia fazer para eliminá-lo. Só restava assistir passivamente à conquista de seu corpo e de suas vontades por aquela ameaça muda de morte.

O assaltante mandou que continuasse dirigindo, sem parar em nenhum ponto. Engraçado como era fácil prosseguir, parar no sinal vermelho, acelerar no verde, observar quando havia uma parada obrigatória, dar a preferência quando a sinalização assim o requisitava, frear quando o carro da frente subitamente acendia suas perigosas luzes vermelhas. Era difícil apenas impedir o pé direito de pressionar o freio, quando uma pessoa levantava o braço e esticava o indicador, sinalizando o seu desejo de entrar, tão difícil que algumas vezes seu pé chegava a deixar o acelerador e tocar levemente o pedal ao lado, parando apenas ao se lembrar do metal frio que estava colado ao seu pescoço. Como era triste ver o rosto de um possível passageiro metamorfosear-se do alívio de quem finalmente via a longa espera aproximar-se do fim, para a profunda decepção de quem está prestes a enfrentar uma nova interrupção em sua vida, que poderá ser ainda maior do que a espera que julgara ter acabado. Mas o cano de metal e suas ameaças silenciosas impediam-no de fazer o que o seu corpo executaria com toda a naturalidade, dispensando qualquer intenção de buscar aqueles que pediam para que realizasse o simples ato de deixar o pesado ônibus perder a velocidade e abrir às portas para quem quer que desejasse entrar e prosseguir com seu destino.

Pelo espelho seus olhos viam as pessoas entregando seus bens valiosos, seus ouvidos não podiam deixar de escutar o choro das mulheres e das crianças, algumas percebendo pela primeira vez como o fio que nos prende à vida é tênue e frágil. Tantas pessoas, que desejavam apenas se locomover, sair de um ponto e ir para outro, desejo tão normal a nós que já fomos nômades, que já tivemos que caçar para provar as delícias de um tenro alimento, e agora viam-se atacadas no caminho de suas rotinas, naquele ônibus que se recusava a parar, avançando incansavelmente pelas ruas e avenidas de uma cidade que não se importava nem um pouco com o que acontecia lá dentro. Sua boca desejava gritar, gritar para que parassem, gritar pela polícia, seus pulmões chegavam a preparar o ar para uma comunicação que jamais existiria, pois a sensatez segurava os seus lábios com força, machucando-os. Que polícia o escutaria atrás dos vidros fechados do ônibus? Que bandido pararia e desistiria de suas recompensas pelo simples pedidos desesperados de um pobre motorista? De que adiantaria sacrificar sua própria vida, arriscar o sangue que deslizava por seu corpo, em uma vã tentativa de impedir que seus passageiros fossem atacados? Nada podia fazer além de continuar os movimentos naturais de seu corpo, que controlavam a grande caixa de metal como se fizesse parte de si, fazendo curvas como se girasse o seu próprio tronco, acelerando como se aumentasse a velocidade de suas próprias pernas, freando como se protegesse o seu próprio organismo.

Parou em um sinal vermelho. Um policial fez sinal para entrar. A mão esquerda chegou a deixar o volante, desejando ir até o botão que abriria a porta. Mas o assaltante pressionou o metal com mais força em sua pele, lembrando-o das consequências imediatas de qualquer ato desagradável. A mão esquerda voltou ao volante, obediente, volátil, dócil, enquanto o policial era deixado para trás, sem compreender o que acontecia. Enquanto isso, o outro bandido pegava toda a mísera aposentadoria de uma senhora, que se indagava como faria sem aquele dinheiro. O motorista não conhecia sua história, mas adivinhava outras mil muito piores, outras cem muito mais tristes, outras dez muito mais assustadoras.

Via o senhor de óculos fundos e bengala abrindo uma geladeira sem uma única comida para apaziguar-lhe a fome, via a linda rapariga loira sendo espancada pelo pai furioso por ter perdido o dinheiro da bebida, recebendo golpes tão fortes no rosto que chegavam a quebrar-lhe os óculos, via o garoto tendo o resto de sua vida marcada por aquele dia, tendo que tratar-se durante anos para superar o trauma que o impedia de sair de casa e ter a vida despreocupada que apenas as crianças merecem ter.

Por trás dos vidros do ônibus, todos que entravam em seu campo visual pareciam ser bandidos, os mendigos prontos para atacar qualquer um para finalmente ter algo para comer, os ricos prontos para fraudar e enganar apenas para acrescentar mais números à louca matemática em que viviam, os homens prontos para estuprar e as mulheres prontas para seduzir e destruir. Viu nas mãos de um homem alto, vestido de preto, a própria foice da morte que um dia há de nos levar a todos, como se andasse pelas ruas sujas da cidade escolhendo arbitrariamente quem seria o próximo a ser ceifado. A noite já subia no horizonte, trazendo toda uma série de visões comuns a seus pesadelos. Todo o mundo parecia ameaçá-lo, todo o universo parecia pronto para atacar a qualquer instante, preparando os seus milhões de cometas para cair em um único momento em quem quer que estivesse no fim da linha vermelha de seu destino. A segurança com que vivera por toda a sua vida parecia ser os inacreditáveis delírios de um louco; os planos que traçara para o seu futuro pareciam meras utopias impossíveis, prontas para serem destruídas com o simples apertar de um gatilho, o simples cortar de uma faca, o simples movimento de uma velha foice enferrujada.

Lembrou-se, naquele momento, do dia em que pegara o lápis de um colega, nos inocentes anos de sua infância, quando a posse e a propriedade ainda estavam sendo impostas a seu super ego. Jamais pensara naquele dia novamente, a lembrança estava apagada como algo sujo que não desejava voltar a ver, mas não poderia ser removida com a mesma facilidade com que apagamos um palavrão com uma borracha. Estava ainda tão viva em sua memória, tão presente aquele passado, que podia ver em sua frente o belo lápis azul, com círculos pretos de mesmo raio por toda a sua extensão, e uma borracha rosada na ponta. Podia sentir novamente aquele profundo e insuportável desejo de posse que tomara conta de seu espírito. Via o menino levantando-se, (como ele chamava mesmo?), dirigindo-se para fora da sala ao término das aulas, pronto para receber os doces carinhos de sua amorosa mãe, enquanto o lápis paciente mantinha-se deitado ao lado da carteira, esperando ser apanhado por quem o desejasse. Como foi doce aquele toque com a madeira polida, que fizera vibrar cada batida de seu coração. Aquele sentimento viciante de posse, de conquista, que com certeza devia ser o mesmo sentido pelos maiores generais ao admirar o campo sujo de sangue. Podia sentir novamente o contato da madeira em seus dedos, deslizar na superfície lisa até encontrar o contato da borracha, enquanto a outra mão espetava-se no grafite afiado, até sair um fino filete de sangue. Naquela noite dormira segurando o lápis, enquanto sua mente sonhava com toda a série de conquistas que lhe preparava a vida. Jamais pensaria que aquele ato logo se tornaria em um motivo de vergonha e arrependimento que tentaria esconder de si mesmo por quase quarenta anos de sua existência.

O tiro o trouxe de volta à realidade que se gritava presente. Controlou o impulso de virar-se subitamente para trás, pois temia a reação do bandido que o ameaçava. Levou os olhos ao espelho, em um movimento inacreditavelmente tão calmo que perturbava o seu espírito ansioso. Felizmente, a imagem mostrou-lhe que ninguém estava ferido. Uma jovem, pálida, no fundo do ônibus, entregava ao assaltante um colar que o motorista subitamente teve a certeza de que era uma joia. Talvez pela relutância e desespero que via, ou adivinhava, nos olhos da mulher. Talvez pelo esboço de satisfação que podia quase enxergar nos lábios do assaltante. De alguma maneira, sabia que aquele colar não poderia ser apenas uma bijuteria. Poderia ter sido resultado do árduo trabalho e esforço da jovem, que durante meses economizara para poder exibir um falso status social que tanto sonhava em possuir; poderia ter sido um presente de um rico jovem apaixonado, que provavelmente a deixaria depois da primeira noite de amor; poderia ser fruto das arriscadas fraudes e especulações de seu pai. Mas agora se perdia, retornando ao vazio de onde viera.

Os assaltantes mandaram abrir a porta frontal, o que fez com um sentimento que se aproximava do alívio, ao ver o espaço por onde finalmente iriam sair, deixando sua vida para sempre. Por um instante, um desses loucos instantes em que pensamos as coisas mais inverossímeis, chegou a acreditar que seria capaz de esquecer tudo aquilo. Mas um dos bandidos, talvez o que o ameaçara o tempo todo com o revólver, talvez o que atacara seus passageiros, retirou um pacote da sacola e estendeu a mão que o segurava, como se oferecesse um presente.

– Cê é gente boa, motô. Toma esse perfume que peguei antes de entrar no balaio.

O motorista olhava incrédulo para o belo pacote da Água de Cheiro, exibindo toda a delicadeza de flores e folhas, que remetiam a uma tranquilidade e beleza quase bucólica. Segurou o volante com força, como se quisesse impedir suas mãos de se condenarem ao pegar o pacote oferecido. Mas não sentiu a borracha dura do volante. Sentiu aquela delicada borracha rosa, em seguida o contato doce da madeira lisa. Lembrou-se daquele sentimento viciante de posse, de conquista, do lindo campo sujo de sangue. Como desejava espetar a ponta do dedo no grafite afiado, e ver novamente aquele filete fino vermelho. O outro assaltante puxou o colega, ansioso.

– Vão logo. Tá chamanu atenção dos neguim.

– Pega logo aí, motô. Num tomei esse aqui no balaio não.

Pegou o pacote. Foi inacreditável ver suas mãos irem em direção à caixa, enquanto sua boca quase murmurava um obrigado, como se seu corpo subitamente tivesse assumido uma outra vida, como se um alter ego houvesse se revelado. Ou, então, (e isso que mais o assustava) como se uma máscara de moral e ética tivesse sido violentamente arrancada, exibindo aquele monstro que sempre tentara esconder. O contato da caixa em seus dedos parecia ser o contato liso da madeira de um lápis, o que ao mesmo tempo agradava imensamente os seus sentidos, mas o machucava, como se arrancasse um filete fino de sangue de seu dedo. Justificou mais tarde que pegara o perfume por medo, que temia a reação do bandido, que queria proteger seus passageiros, que temia a afiada foice da morte, mas sabia que não era verdade. Pegou o perfume por algum motivo que estava além da sua capacidade de compreender a si mesmo. Ou por um motivo tão simples que jamais teria a coragem de admitir.

Ao chegar em casa, no amanhecer do dia seguinte, trancou-se no banheiro e chorou, chorou como um bebê. Felizmente a esposa já havia saído para o trabalho. Quando ela retornou (a noite já caía no horizonte), ele entregou-lhe o pacote com um sorriso nos lábios. Os olhos da mulher brilharam de satisfação ao ver o vidro caro e elegante, tão além do que sabia que seu marido poderia ousar gastar. Agradeceu com um beijo delicioso, enquanto começava a desabotoar-lhe a camisa.

Parafuso – Vale Literário

valeSmall Mais um conto vindo do projeto Vale Literário: Parafuso. Lembre-se de que você pode ver todos os textos na página do projeto, em www.valeliterario.com.br.

Parafuso

Leandro Soriano Marcolino

Saltou.

olá garotos nós vamos abrir um novo curso aqui no clube de salto ornamental amanhã vai ter uma aula gratuita venha experimentar nossa legal eu quero tentar isso garoto pule no trampolim e caia na almofada isso de novo agora vamos pular na cama elástica que divertido é mais legal que natação eu quero fazer esse curso deixa eu fazer pai por favor

Estica o corpo inteiro, estendendo os braços para cima, enquanto sua perna direita está flexionada no ar. Volta a esticar a perna direita quando atinge a altura máxima. Começa a descer. No exato instante em que seus pés tocam novamente o trampolim, flexiona os joelhos e gira os braços para baixo, impulsionando o trampolim com o peso de seu próprio corpo. Continua girando os braços, levando-os agora novamente para cima, e estica as pernas com força, sendo jogado pelos seus próprios músculos e pelo trampolim que retorna o impulso recebido em um movimento oposto ao anterior. Está completamente solto no ar, se afastando cada vez mais.

que é isso garoto você tem é que nadar salto não é esporte você tem que cuidar do seu corpo não perde seu tempo não pai você não entende é esporte sim o treinamento é intensivo é cansativo a gente tem que pular corda e correr em volta da piscina a gente cansa precisa de força nas pernas a gente pula na cama elástica é cansativo é muito caro meu filho volta para a natação que a gente vai ter mais dinheiro para comprar presentes para você a gente tem que economizar também mas pai é o que eu quero fazer não me obrigue a voltar para a natação por favor eu quero saltar é tão mais divertidooooo e futebol por que você não tenta futebol você deveria fazer um esporte que é mais apropriado para você

Impulsiona o tronco para trás, trazendo sua cintura para frente. Ainda com os braços esticados para cima, flexiona os joelhos levando as pernas para trás da coxa. Move os braços para os lados, aumenta a flexão dos joelhos, mas impulsiona as coxas para frente. Vê um céu azul sem nuvens, seu corpo agora está quase paralelo em relação à superfície da água. Suas coxas continuam a subir, encosta o queixo no tronco e move os braços para frente.

que vergonha essas notas suas você precisa estudar mais você está treinando demais não mãe é porque o professor não explicou a matéria direito e ele é cismado comigo pare já com essas desculpas eu sei muito bem que você não fez o seu para casa eu fiz eu juro que eu fiz é que esqueci o caderno em casa aqui diz que você não fez o para casa não é porque esqueci o caderno eu juro que fiz o para casa pare já com essas desculpas você está gastando muito tempo no treinamento as outras crianças nadam três horas por semana mas você está praticando seu salto horas e horas no mesmo dia não pode ser assim você tem que se dedicar para coisas mais importantes não jogue o seu tempo fora daqui a alguns anos já vai ter que começar a se preparar para o vestibular e o curso de advocacia que você quer fazer você tem que levar as coisas mais a sério não desperdice seu tempo você tem é que meter a cara nos livros

Segura as pernas, enquanto os joelhos continuam flexionados. Suas costas estão curvadas, em uma posição quase fetal. Vê pessoas de cabeça para baixo, algumas gritam palavras que jamais conseguiria escutar. Vê a superfície limpa e azul da água, que usa para se orientar. Seu corpo continua girando, vê novamente o público movendo-se rapidamente. Tudo parece borrado, mas tem a impressão de ver seu pai na fileira central. Sabe que é impossível, mas por um instante seu coração bate mais forte. Sente o cheiro da água, e o do seu próprio suor.

só tem mulher naquele clube é por isso que você quer ir tanto né você só que ir lá para ver aquela vaca de biquíni não não ela treina de maiô ah é de maiô então você quer é ver aquela vaca de maiô é não eu não disse isso não importa o que você disse ou não disse o que importa é o que você pensa você é um mentiroso eu não confio em você você não pode ir você tem que ficar aqui comigo você tem que confiar em mim para a gente poder continuar junto o que você quer dizer com isso me diga o que você quer dizer com isso não nada é só que é difícil manter um relacionamento sem confiança desse jeito e você acha que é minha culpa você acha que é minha culpa não não claro que não mas é preciso ter confiança senão é difícil ficar junto termine comigo então termine comigo agora e vá fazer a porcaria dos seus saltos vá ver a maldita vaca de biquíni

Solta as pernas e estica o corpo, mantendo-as bem juntas. Flexiona os cotovelos, enquanto move os braços em direções opostas, levando simultaneamente sua mão esquerda para frente de sua barriga e a mão direita para trás de sua cabeça. A inclinação de seu corpo provocada pelo movimento dos braços gera o torque necessário para que comece a girar em torno do seu eixo longitudinal. Vê agora o público rodando de cabeça para baixo em seu redor, e o cheiro de cloro da água fica mais forte. Gotas de suor caem em seus olhos, fazendo-os arder. Sente a cabeça pesada.

eu fui demitida não sei o que fazer você tem que arrumar um emprego de verdade você tem que trazer dinheiro para nossa casa como nós vamos alimentar mais uma boca daqui a três meses eu imploro para que você pare por favor nós não temos dinheiro suficiente isso que você faz não é trabalho de verdade calma querida eu tenho certeza que as coisas vão melhorar se eu ganhar a competição vai ter um prêmio em dinheiro e eu posso ser contratado por um clube melhor ganhar na competição você acha que você vai ganhar na competição tem centenas de pessoas participando como que eu e meu bebê vamos depender de você ganhar em uma maldita competição você nem é tão bom assim nós precisamos agora é de ganhar dinheiro de verdade nós precisamos de algo certo não de uma maldita possibilidade de ganhar em uma maldita competição se você não parar eu vou voltar para a casa dos meus pais você é um irresponsável egoísta você não se importa comigo você só se importa com você você só se importa com seus malditos saltos você não leva as coisas a sério você é um irresponsável

Continua girando de cabeça para baixo, com as pernas esticadas e uma mão em frente de sua barriga e a outra atrás de sua cabeça, mas seu corpo não se mantem completamente perpendicular à superfície da água. Sua inclinação inicial diminui enquanto gira, por um breve instante mantem um perfeito ângulo de noventa graus em relação à água, mas seu corpo passa a inclinar na direção oposta. Completa dois giros, mas sabe que não vai conseguir manter o movimento por muito tempo.

sua performance foi terrível como você conseguiu ficar tão mal colocado você é um péssimo atleta acho melhor procurar outra coisa para fazer eu não quero te treinar mais é uma perda de tempo não eu me distraí desculpe não tem o que pedir desculpas se quer ser profissional não pode cometer esses tipos de erros me desculpe como é que você escorrega na partida foi uma vergonha você destrói a minha reputação eu nunca mais vou trabalhar com você você vai me fazer perder meu emprego me desculpe eu tenho que trabalhar com atletas de verdade eu escorreguei desculpe você não tem o menor talento não quero mais escutar suas desculpas eu me distraí desculpe se insiste em continuar procure outro clube eu não quero mais te ver na minha frente por favor me desculpe eu me distraí eu imploro suma da minha frente você é uma vergonha

Seu corpo continua inclinando, até ficar novamente quase paralelo à superfície da água. Estica o braço esquerdo, e após breves instantes o direito. Inclina o quadril, formando um ângulo entre o tronco e as pernas. O movimento muda o torque de seu corpo, gira novamente em torno do seu eixo transversal, com o tronco indo em direção às pernas. Abraça as pernas até enxergar a superfície da água, quando começa a levar os braços para frente, preparando o seu movimento final.

por que eu continuo tentando por que não desisto estou ficando velho minhas possibilidades cada vez menores por que não entro em uma universidade faço o curso de advocacia que meu pai sempre sonhou ganho dinheiro tenho uma vida mais certa por que ficar perdendo tempo qual é o sentido disso tudo afinal qual é o sentido desse meu desejo de continuar não seria mais importante ganhar muito dinheiro para minha esposa e minha filha eu não tenho talento nenhum minha esposa tem que ficar fazendo hora extra coitada já perdi várias competições sou um péssimo saltador eu não tenho talento nenhum já tive que sair de dois clubes por que eu não desisto sou desajeitado não nasci para isso minha esposa trabalha tanto eu não consigo sustentar minha própria família eu sou irresponsável eu sou egoísta sou péssimo não tenho talento não nasci para isso então por que por que por que por que eu preciso tanto continuar por que por que por que por que por que por que por que por que por que esse desejo

Retifica o corpo, jogando suas pernas para cima, e flexionando o tornozelo de forma que seus dedos do pé apontem para o céu. Ao mesmo tempo, estica completamente os braços acima de sua cabeça. Consegue interromper seu movimento giratório, e está agora quase perpendicular à superfície da água, caindo como uma flecha. Junta as mãos acima da cabeça, com as palmas esticadas para fora. O cheiro de cloro entra forte em suas narinas. Prende a respiração, preparado para o impacto iminente. Os gritos da plateia chegam em seus ouvidos, como se viessem de algum mundo distante. Novamente vê seu pai, mesmo sabendo que era impossível, como se viesse de algum mundo distante. Suas mãos já começam a sentir a umidade das partículas de água logo acima da superfície azul da piscina. Fecha os olhos.

você tem é que nadar salto não é esporte pule no trampolim e caia na almofada isso de novo termine comigo agora e vá fazer a porcaria dos seus saltos nós precisamos agora é de ganhar dinheiro de verdade foi uma vergonha você destrói a minha reputação que vergonha essas notas suas você deveria fazer um esporte que é mais apropriado para você por que eu não desisto sou desajeitado amanhã vai ter uma aula gratuita venha experimentar você tem que se dedicar para coisas mais importantes eu não confio em você e o curso de advocacia que você quer fazer você não pode ir você tem que ficar aqui comigo volta para a natação que a gente vai ter mais dinheiro para comprar presentes para você você tem que levar as coisas mais a sério não tenho talento nenhum você é um péssimo atleta acho melhor procurar outra coisa para fazer por que não faço o curso de advocacia como é que você escorrega na partida olá garotos nós vamos abrir um novo curso aqui no clube como que eu e meu bebê vamos depender de você ganhar em uma maldita competição já perdi várias competições eu não tenho talento foi uma vergonha eu fui demitida só tem mulher cara nos livros tenta futebol pule no trampolim por que vergonha bebê confiança advocacia mãe estudar pai apropriado irresponsável trampolim esposa reputação egoísta dinheiro irresponsável egoísta dinheiro mãe estudar pai apropriado vergonha trampolim futebol livros advocacia escorrega irresponsável egoísta desajeitado escorrega irresponsável egoísta desajeitado irresponsável egoísta desajeitado irresponsável egoísta desajeitado egoísta desajeitado egoísta desajeitado egoísta desajeitado egoísta desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado desajeitado

Splash!

Medalha de ouro.

Peixe – Vale Literário

valeSmall Mais um conto do projeto Vale Literário: Peixe. Neste eu tentei um texto mais estilo crônica, com toques de humor. Lembre-se de que você pode ver todos os textos na página do projeto, em www.valeliterario.com.br.

Peixe

Leandro Soriano Marcolino

– E você, Teófilo, o que quer ser quando crescer?

– Eu quero ser um peixe.

A professora ficou estática. A sala, no mais completo silêncio. Até que finalmente ela esboçou um meio sorriso:

– Teófilo, meu querido, você não pode ser um peixe. Estamos falando de profissões, como bombeiro, policial, médico… Lembra do que discutimos, querido? Você tem que escolher alguma coisa assim, entendeu?

A professora não esperou Teófilo responder. Não podia correr o risco. Já passou para a próxima aluna.

– E você, Aninha, o que quer ser quando crescer?

– Eu quero ser médica, titia.

Sorriu, aliviada.

– Que legal, Aninha!.. Agora, turma, peguem os seus lápis de colorir, e cada um tem que desenhar o que vocês querem ser quando crescer. Quem quer ser médico, tem que desenhar um médico trabalhando. Quem quer ser bombeiro, tem que desenhar um bombeiro trabalhando. Entenderam? Caprichem bastante, porque nós vamos expor seus desenhos para a escola inteira! Entenderam? Alguém tem alguma pergunta?

Ninguém perguntou nada. As crianças, animadas, já pegavam os seus lápis e rabiscavam, coloriam, gritavam, mostravam seus desenhos uma para as outras. A professora andava pela sala e via surgindo policiais controlando o trânsito, garis limpando a rua, bombeiros salvando gatos, motoristas de taxi costurando o trânsito, detetives seguindo pistas, até mesmo mágicos e malabaristas. Elogiava os alunos, e sorria, satisfeita por ter sugerido essa ideia para a direção da escola, tinha certeza de que os pais iriam amar a exposição na semana das profissões.

Passou pela mesa de Teófilo. Gelou. Parou de sorrir. O garoto, completamente compenetrado, desenhava um lindo e detalhado peixe. Era um peixe dourado grande, grande e gordo, com olhos esbugalhados, as escamas eriçadas, as gueiras abertas e vermelhas. Um vermelho forte, vivo. Nadava em direção à um conjunto de algas, talvez para se esconder de algum predador. O desenho era tão real, tão detalhado, tão bem feito, incrível para um garoto daquela idade. Teria ficado muito orgulhosa, se não estivesse desesperada com aquela situação. Como é que iria expor aquilo para a escola inteira, durante a semana das profissões? O que iriam pensar dela?

– Teófilo, meu querido – tentou sorrir. – O que é que você pensa que está fazendo, meu amor?

– Uai, fêssora, cê pediu pra gente desenhar o que quer ser quando crescer. Eu quero ser um peixe.

E o diabo do menino ainda repetiu, com toda a clareza do mundo:

– Eu quero ser um peixe quando eu crescer, professora.

A cabeça dela trabalhava rapidamente. Será que daria para expor os desenhos de todos os alunos, menos o de Teófilo? Será que os pais de Teófilo aceitariam a situação? E se expusesse o desenho de Teófilo, o que os outros pais iriam pensar? Será que teria que dar um jeito de cancelar a exposição inteira?

– Teófilo, amor de minha vida, você não poderia desenhar outra coisa? Por que você não desenha um policial, um bombeiro, um motorista de fórmula um? Não seria legal um policial lutando contra os bandidos, salvando as mocinhas? Não é emocionante? Pode até ser um super-herói, um batman, até isso serve, meu amor.

– Não, fêssora, eu quero ser um peixe.

– Nossa, legal, acho que quero ser um peixe também.

– Não, Pedrinho, por favor, não. Continue desenhando o mágico, meu filho, por favor.

Desistiu. A situação estava ficando cada vez pior. Já estava imaginando uma série de peixes expostos pela escola, na semana das profissões. Era melhor deixar para lá, esconder o desenho de Teófilo e explicar para os pais do menino depois. Talvez fosse a melhor opção, talvez Teófilo estivesse precisando de ajuda.

**

Virava de um lado para o outro na cama. Não conseguia dormir.

– O que foi, querida? Para de ficar mexendo tanto desse jeito.

– Desculpe… Não sei, eu… estou preocupada com um aluno…

– O que aconteceu?

– Ele quer ser um peixe.

O marido riu. Gargalhava. Chegou a chorar de tanto rir.

– Não se preocupe, querida, é só bobagem de criança.

Sentiu vergonha da sua preocupação. É, só bobagem de criança, é claro. Fechou os olhos, e adormeceu.

**

– Mamãe, mamãe!..

– O que foi, Clara? Você está tão pálida!

– O Teófilo, mamãe! O Teófilo sumiu!

**

Conferia a regulagem do cilindro de ar comprimido. Mesmo com tantos anos de profissão, ainda se sentia nervoso naqueles breves instantes antes do mergulho. Sentia medo, mas era um medo misturado com orgulho. Não tinha sido fácil se tornar um mergulhador profissional. Riam dele desde criança, muitos insistiam que mergulho não era uma profissão, mas mantivera firme o seu objetivo.

O cilindro tinha 2.200 litros de ar comprimido. Se perguntava se seria tempo suficiente. Iria fazer um mergulho profundo, o que gastaria o ar mais rapidamente devido a pressão. Não queria nem imaginar o que aconteceria se o ar acabasse enquanto ainda estivesse lá embaixo, nas profundezas. Muitas vezes sentia esse medo de entrar no mar e nunca mais voltar. Principalmente nesses breves instantes antes do mergulho.

Colocou o capuz de borracha e ajustou a fita para fixar a lanterna. Vestiu a máscara transparente. Em breve não poderia mais respirar o ar que todos nós respiramos. Em breve, teria que respirar embaixo d’água como um peixe. Era uma capacidade fascinante, e sempre se admirava ao pensar sobre isso, mesmo com tantos anos de profissão: um homem que podia respirar como um peixe e literalmente viver embaixo d’água. Vestiu os pés de pato, colocou o pesado tubo de ar comprimido nas costas, conectou-o à máscara. Já não parecia mais um ser humano. Riam dele quando criança, riam dele e o chamavam de homem-peixe.

Terminado todos os preparativos, sua ansiedade diminuía. Já mais seguro de sua própria sobrevivência, agora que sabia que todo o esquipamento estava devidamente ajustado, se concentrava no objetivo que tinha em frente. Havia um mistério naquela região, um mistério que tinha que desvendar. Sim, é claro que as fotos lhe trariam um bom dinheiro, mas de fato o que mais o motivava era uma grande curiosidade de ver com seus próprios olhos se a lenda era verdadeira. Sempre fora curioso, e fascinado pela beleza e mistérios escondidos no fundo do mar. Riam dele como se fora louco, riam dele, mas agora iria mostrar para todos eles.

O barco parou no local planejado. Seu coração batia forte novamente. Respirou fundo, tinha que se acalmar. Se continuasse nervoso daquele jeito iria consumir muito oxigênio e precisava de um longo tempo no fundo do mar. Não iria encontrá-lo nas regiões rasas, tinha que ir para as profundezas. Teria que lidar com elevados níves de pressão.

Pulou. Ligou o ar comprimido. Agora podia respirar como um peixe, ou pelo menos era a melhor aproximação possível sem as gueiras. O mar ia se desvendando diante de seus olhos, primeiro viu peixes pequenos que rapidamente se afastavam quando ele se aproximava. Chegou mais perto do fundo, e viu belos corais multicoloridos, uma de suas grandes paixões no início de sua profissão. Agora já se interessava mais por coisas misteriosas, pelo desconhecido, ao invés de simplesmente buscar a beleza em seus mergulhos. Não só por sua própria curiosidade, mas era também mais lucrativo. Tinha que lutar pela sobrevivência, como qualquer outro animal.

Via agora os mais diversos tipos de peixe. Borboletas amarelos, com seu corpo fino, alongado e pequenas nadadeiras, brincavam entre as algas do coral. Às vezes era difícil acompanhar seus movimentos, se perdiam entre as algas também amarelas. Já os Borboletas listrados nadavam acima das algas e podiam ser mais facilmente observados. Nadavam rápido, porém, talvez procurando um lugar onde poderiam ficar menos expostos. Mais para frente viu um Garoupa-gato, com seu corpo amarronzado cheio de pintas, quase como se fosse um leopardo do mar. Seus colegas achavam a comparação engraçada, mas não conseguia deixar de pensar em um leopardo sempre que se deparava com aquela espécie. Aquela região era muito rica e colorida, havia também Jaguareçás, Garoupinhas, Linguados e os avermelhados Olho-de-cão.

Mas não podia perder tempo. Tinha que nadar em direção às profundezas. Via cada vez menos peixes à medida em que se afastava, e a iluminação diminuía. Começou a sentir medo. Não estava acostumado com mergulhos tão profundos. Ligou a lanterna, mas ela iluminava apenas uma limitada região em sua frente, enquanto tudo em volta permanecia na mais completa escuridão. Tentava retomar a calma, sentia sua respiração acelerada que diminuiria o tempo disponível para encontrar a criatura. Ativou a câmera. Será que a luz iria afastá-lo? Torcia para que não…

Os peixes agora eram menos coloridos. Ninguém precisava de cor naquele nível de profundidade, com tão pouca luz. A beleza dava lugar ao desconhecido, ao mistério. Via grupos de Peixes-lanterna nadando ao seu redor, com seus pequenos corpos que brilhavam como se fossem estrelas distantes. Algumas vezes seu feixe de luz iluminava assustadores Peixes-víbora, com o corpo fino como se fossem agulhas, mas a boca cheia de grandes presas. Via também peixes sem olhos, criaturas grotescas que não precisavam da luz para se orientar.

Será que iria encontrá-lo? Não teria muito tempo naquele nível de pressão, precisava de sorte. Conferiu o nível do ar comprimido: 400 litros. Tentava se manter calmo. Mas como era difícil se controlar. Precisava de ar suficiente para voltar, senão ficaria preso ali para sempre, preso no fundo do oceano como um homem-peixe. Finalmente, teve uma ideia. Apagou a lanterna. Viu-se na mais completa escuridão, exceto por poucos peixes que brilhavam distantes. Acendeu-a por um longo tempo, apagou de novo. Escuridão, a mais completa escuridão. Acendeu por um longo tempo mais duas vezes. Em seguida acendeu por um tempo curto, um tempo longo, dois curtos. Um curto e depois um longo. Esperou alguns minutos, nervoso. Nada. Será que a lenda era verdadeira? Existiria realmente tal criatura?

Tentou novamente: três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Nada. Talvez ele não existisse, afinal. Continuou nadando, sempre repetindo a mesma sequência. Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Talvez a luz o assustasse. Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Não era possível que não iria dar em nada… Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Não queria desistir. Três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo. Mas seu tempo já estava mais do que esgotado, (três longos, um curto, um longo, dois curtos, um curto e um longo) se não retornasse ficaria preso eternamente no fundo do oceano.

Mas ele apareceu. Viu primeiro o seu rosto no feixe de luz: os olhos esbugalhados, a protuberância no lugar do nariz, a boca cheia de dentes, as gordas bochechas. Suas orelhas já estavam completamente deformadas, mas podia ver um pequeno buraco na lateral direita de sua cabeça. O mergulhador tremeu, de medo ou de excitação. Via agora o seu pescoço, o pescoço com as gueiras abertas e vermelhas. Suas escamas estavam eriçadas, como se estivesse arrepiado. Talvez ele também estivesse assustado de ver novamente um ser humano. Há quanto tempo vivia afastado, no fundo do oceano? Há quanto tempo não via ninguém? Podia observar agora seu corpo: ele era grande, gordo, e vermelho. Seus braços eram como longas nadadeiras, que terminavam em cinco pequenos filamentos que se movimentavam com a corrente de água. Um desses filamentos se mantinha em oposição aos outros, como um polegar. Talvez ainda fosse capaz de agarrar e manipular objetos. Talvez. Mas agora eles balançavam livres na água. Via suas pernas, transformadas em uma longa barbatana caudal. Ao contrário de um peixe comum, as movia de forma independente, como uma pessoa nadando crawl embaixo d’água. Ou como um mergulhador. Como um mergulhador. Riam dele, desde criança, riam dele e o chamavam de homem-peixe. Riam dele como se fora louco.

As fotos. Não podia esquecer das fotos. Tentava destampar a câmera, nervoso, não conseguia desencaixar a tampa da lente. Sempre conseguia apertar os dois botões laterais da tampa com tanta facilidade, nunca imaginara que se tornariam um problema. Quando finalmente a tampa soltou, percebeu que ele já havia desaparecido, fugira como um garotinho tímido e assustado. Riam dele, desde criança.

A Descoberta – Vale Literário

valeSmall Tenho um projeto literário com mais três amigos escritores, chamado Vale Literário. Neste projeto, propomos temas-desafios e cada um tem que escrever um texto sobre o tema. O primeiro destes foi “A Descoberta”, e publico abaixo o meu texto. Caso queira ver o texto dos outros participantes, acesse o site do nosso projeto: www.valeliterario.com.br. Aguardamos seus comentários!.. 🙂

A Descoberta

Leandro Soriano Marcolino

Abandonara a mulher e os filhos. Sua pele ainda ardia com as unhadas. Pegara poucas roupas, a chave do carro, uma latinha de cerveja, e agora dirigia sem rumo para uma cidade qualquer.

Há anos sentia uma certa angústia. Aquela sensação de que poderia ser feliz. Precisava apenas de pequenos prazeres. Pequenos prazeres, como tomar uma cerveja, comer uma boa refeição, correr com um cachorro, assistir tranquilo à um jogo de futebol. Mas como era tudo tão difícil naquela vida familiar, às obrigações, os deveres, os pedidos tão difíceis de recusar. A esposa não gostava que bebesse, não queria ter cachorros, seus filhos não o deixavam um minuto em paz. E, no trabalho, sua consciência e seu chefe não o deixavam relaxar. Faltava-lhe um tempo para sí, um tempo para curtir seus pequenos prazeres. Sentia uma tremenda necessidade de estar só. Mas teria suportado tudo aquilo, se não fossem as brigas. As brigas que foram se tornando diárias, os berros, os ataques. Dia após dia, cansado do trabalho, doido para deitar no sofá e ver televisão, ainda tinha que desperdiçar seu tempo gritando e discutindo.

Naquela última noite, ela não o deixara beber. Brigaram na cozinha, em frente dos filhos. Ele estendia à mão em direção a lata, ela a retirava e batia em seu braço. Furioso, levantou-se com os punhos cerrados, tão distraído por sua raiva e a vontade de esmurrá-la imediatamente que não percebeu o chute no estômago que o fez dobrar-se em dois. As crianças choravam, assustadas.

Furioso, pegou a latinha de cerveja, foi até o quarto, tirou a mala do armário e jogou lá dentro roupas escolhidas aleatoriamente. A mulher, desesperada, gritava para que parasse, o segurava, arranhava suas costas.

Parou o carro no estacionamento de um supermercado. A latinha que trouxera já estava vazia. Sentia a boca cheia de saliva, já preparada para o que lhe aguardava. Gastou bons minutos escolhendo entre diversas marcas de cerveja, vinhos, cachaças e whiskys. Sentia falta de seus filhos, mas era uma falta que emanava distante, como se fossem criaturas pertencentes ao mundo de seus sonhos. Parecia ter-se separado de sua própria vida, e agora estava pronto para nascer de novo e ser feliz. Chegou a admirar algumas das mulheres que o rodeavam, especialmente aquela loira de bermuda curta e camisa regata, que deliciosamente escolhia vinhos. Mas sentia uma certa aversão à beleza, era atraído e ao mesmo tempo repelido; a beleza causava-lhe uma admiração repleta de medos e inseguranças, cheia daquela certeza de que tudo o que queria era estar só.

Colocou as bebidas no porta-malas do carro e voltou a dirigir. Sentia prazer na direção, mais um de seus pequenos prazeres, especialmente quando o porta-malas estava cheio de bebidas. Fez questão de não ligar o rádio, escutava apenas o vento entrando pela janela e os outros carros que velozmente ultrapassava. Algumas vezes pensava na loira de regata abaixando para escolher vinhos. Algumas vezes pensava em seus filhos, suas duas lindas garotinhas, que adoravam montar em suas costas. Continuava a dirigir, podia ter parado naquela cidade, mas não, queria a outra, queria a mais distante, queria afastar-se de sua antiga vida. Queria poder beber uma cerveja e ser feliz.

As lembranças insistiam em persegui-lo, mas sempre com aquele sabor de sonhos. Lembrava-se de sua mulher deitada, nua, em sua lua de mel. A beleza, fascinante e cruel, que o prendia e o sufocava ludibriando-o com o prazer. A beleza, que o atraía, mas com aquela estranha sensação de repulsão. Lembrava-se do dia em que suas filhas nasceram, rosas, sangrentas, feias. O choro insuportável em seus ouvidos. Mas aquela certeza curiosa de que de alguma forma as amaria.

Olhou o horário no rádio. Haveria um jogo esta noite, transmitido de outro país. Sorriu, poderia vê-lo à tempo. Poderia vê-lo sem ser incomodado, sem ninguém que se opusesse à sua vontade, sem ninguém para dizer que queria atenção por favor não veja televisão esta noite, sem ninguém para dizer você está bebendo demais por favor não beba esta noite. Poderia ver o jogo e saborear a cerveja que o esperava ansiosa no porta-malas. Por que a mulher cismara em não deixá-lo beber? Qual era o problema, afinal? Era de noite, já tinha trabalhado, já tinha cumprido com suas obrigações, por que não podia aproveitar um pouquinho sua vida?

Mas aquela noite fora pior. Ela estava mais nervosa. Quando foi a última vez que menstruara? Que dia era hoje… Ah!, sim, trinta e um de agosto, hoje completavam dez anos de casado………… Dez anos de casado………… Suas lindas garotinhas rindo, montadas em suas costas, enquanto andava pelo parque………… Problemas!.. Problemas!.. Não sabia é como aguentara tanto tempo com aquela mulher. Queria era comemorar o primeiro dia da sua solidão. Pensou que jamais se esqueceria daquela data, o primeiro dia em que finalmente poderia viver só.

Dirigiu pelo centro de uma cidade qualquer, procurando um hotel. Já era quase hora do jogo. Achou um apart-hotel bacana, sala, cozinha e banheiro. Podia até morar ali por um tempo. Não precisava realmente ir à empresa, só ia para se concentrar melhor no trabalho mesmo. Bastava enviar sua parte para o chefe, se fizesse tudo direitinho pouco importava para o chefe onde estava.

As bebidas pesavam em seu braço, mas era um grande prazer carregá-las. Sua boca já estava molhada de expectativa. Fez ansioso o registro do quarto, pegou as chaves e subiu no elevador. Era tudo maneiro, o elevador até falava o número do andar, dava boa noite. Abriu a porta do apartamento. A sala tinha um sofá bonito, de couro, com lugar para duas pessoas. Bem, teria que usá-lo sozinho, pensou, com um sorriso irônico no rosto.

Colocou a mala no quarto. Olhou para a cama de casal, grande, espaçosa, que teria que aproveitar sozinho. Bem, teria muito mais espaço para se espreguiçar. Lembrou-se imediatamente da sua mulher deitada, nua, em sua lua de mel. A beleza, a perigosa beleza que o chamava. Tentou afastar os pensamentos, e correu para a sala.

Foi colocar as bebidas na cozinha. Seria uma pena ter que beber a cerveja já quente… Colocou-as no freezer, quem sabe conseguiria tê-las gelada para o segundo tempo?.. Resolveu abrir a geladeira, curioso. Meu Deus! O apart-hotel mantinha um frigobar! Que sorte! Um grande sorriso de satisfação estampou-se em seu rosto. Escolheu a mais gelada das cervejas. Estava excitado, em poucos instantes poderia aproveitar o seu grande momento de prazer.

Sentou-se no sofá, com a lata de cerveja gelada queimando em suas mãos. Ligou a televisão, ansioso pelo jogo de futebol que começaria em breve. Finalmente, poderia vê-lo sem ser incomodado, sem ter que aguentar as reclamações e os lamentos, a mulher pedindo para parar de beber. Nenhuma criança chorando em seus ouvidos, nenhuma mulher pedindo serviços que pouco importavam, falando mal do jogo, reclamando de problemas que pouco afetavam a sua vida. A mulher nua deitada de costas na cama de casal, a beleza, a beleza que atraía e repelia, a beleza que o chamava e o fazia escapar. As garotinhas rindo, montadas em suas costas, enquanto pulava pelo parque. Rindo, rindo, rindo… Abriu a lata gelada de cerveja, já sentindo-a descer quente por sua garganta. E foi naquela expectativa máxima de prazer, pronto para saborear livre o líquido da cevada fermentada e perder-se na emoção do jogo prestes a desfilar em frente de seus olhos, que ele finalmente percebeu toda a tristeza de sentir-se só.

Miniconto III

Um verso caminhava pelas ruas escuras da cidade, assoviando a sua própria musicalidade. Faminto, vestia roupas justas e se oferecia aos homens em troca de comida. Sonhava em crescer e se tornar uma poesia. Algumas vezes era notado por antologias, mas ocupadas demais com seus próprios poemas, não queriam adotá-lo. Sozinho, com frio, caminhava, esperando o seu lugar no mundo.

Miniconto II

Ele sabia que ia morrer. Recebera uma carta violeta, avisando-lhe a data. Preparou seu testamento. Pediu perdão por seus pecados. Mas havia algo que não conseguia resolver. Debruçado sobre a mesa, passou suas últimas horas sozinho, buscando a prova do grande teorema de sua vida. Não achou a solução. Mas morreu feliz.

Miniconto I

Sentaram. A mulher tentava segurar as lágrimas. Sorria, de alguma forma. Devia estar feliz, sabia que devia estar feliz. Mas como ele reagiria? Uma idosa se aproximou oferecendo rosas. Ele comprou uma. A mulher olhou para a flor, o broto preso no caule. O broto que jamais brotaria. Não aguentou mais. Chorou.

Identidade – Um conto de “O Grande Livro das Pessoas sem Nome”

– Não, você não pode entrar.

– Como assim, não posso entrar? Eu trabalho aqui!

– Sinto muito, senhor, seu nome não está na portaria.

– Meu nome tem que estar na portaria, meu senhor, eu trabalho nesse prédio.

– Sinto muito. São as regras.

– Não. Não, não é possível. Estou nessa empresa há anos, trabalhei aqui ontem, droga, até me despedi de você quando ia embora, comentei sobre o tempo ruim que estava fazendo, a chuva.

– Não me lembro…

– Não se lembra? Caiu um toró danado, um pé d’água horroroso.

– Lembro da chuva, senhor, mas não me lembro de você.

Ficou em silêncio. A declaração, abrupta, sincera, ecoou em seu ouvido como uma ameaça.

– Não se lembra de mim? Como assim, não se lembra de mim? Trabalho aqui há anos, como pode não se lembrar de mim? Está certo que não conversamos, não somos amigos, nem sei seu nome, mas sempre te cumprimento quando chego, sempre me despeço ao sair, acho que merecia ao menos uma lembrança, uma vaga lembrança que seja, pelo menos um “acho que já vi esse sujeito em algum lugar”.

– Eu… sinto muito, senhor. Não tenho uma boa memória.

– Estou vendo! Estou vendo…

Pegou o celular, indignado, e ligou para o chefe.

– Olá! A droga do porteiro não está me deixando entrar.

– Desculpe… Quem fala?

– Sou eu!

– Desculpe, senhor, você poderia dizer o seu nome?

– Sou eu! Não está reconhecendo minha voz?

– Desculpe…

– Sou eu, chefe! Seu assistente!

– Que tipo de brincadeira é essa?

– Como?

– Não tenho assistente nenhum! Vai dar trote em outro, seu imbecil.

A linha foi desligada. Olhava pasmo para o telefone mudo em suas mãos. O porteiro o observava com um leve sorriso sarcástico nos lábios.

– Eu… Eu… acho que vou embora.

Saiu do prédio, segurando a maleta com tanta força que fazia os seus dedos doerem. Não sabia o que fazer, para onde ir, em plena terça-feira de manhã. Será que havia sido despedido? Mas não fazia sentido, sem nenhum aviso prévio nem nada. Não, não era possível, tinha que haver outra explicação. Mas qual?

Voltou para seu apartamento. Sentou na sala de visitas, a cabeça doendo de preocupação. Pelo menos, a atmosfera familiar o ajudava a relaxar. Sentia-se seguro, sentado confortavelmente no sofá conhecido, quente e macio. Fechou os olhos. Meu Deus, o que falaria para a esposa? Como iriam se sustentar agora, sem aquele emprego? Logo agora que as contas estavam mais equilibradas, logo agora que finalmente haviam decidido ter um filho… Ela estava tão feliz… Meu Deus, o que falaria para a esposa?

Ela entrou na sala. Seu olhar ferino o assustou.

– Querida, eu…

– Saia já daqui! – Gritou.

– Como?

– Saia daqui agora, senão eu vou ligar para a polícia!

– Calma, querida, apenas fui demitido, não precisa falar comigo desse jeito.

– Eu não estou brincando. Saia agora!

– Meu amor, vamos conseguir achar uma solução para isso, posso fazer uns bicos…

A mulher pegou o telefone. Ele sabia para onde estava ligando, fugiu desesperado de seu próprio lar. Sentia o coração ainda batendo forte, enquanto andava ofegando pela rua. Já haviam brigado antes, mas nunca daquela forma. Não depois que parou de beber. Ainda olhou uma última vez para seu apartamento, na esperança de ver o rosto conhecido aparecer na janela. Mas nada…

Andou sem rumo pelas ruas da cidade. Tudo parecia cinza e triste, naquele dia nublado de outono. As pessoas passavam apressadas ao seu redor como se não tivessem rosto, apenas manchas escuras em sua visão periférica. Atravessava as ruas como se não tivessem nome, cruzava avenidas que com certeza existiam no infinito de sua memória, mas não se dava ao trabalho de reconhecê-las.

Sentiu fome. Almoçou em um restaurante que jamais vira antes. A comida era deliciosa, apesar da aparência simples do local. Entrou no final de uma longa fila para pagar a conta, irritado e impaciente, como se estivesse atrasado para milhares de compromissos. Enquanto esperava, abriu a carteira para pegar o cartão… que não estava lá. Suava. O cartão não estava lá. Revirou a carteira, procurou dentro da maleta, olhou os bolsos. Nada. Pelo menos, encontrou uma nota de dez reais. Mas como faria sem seu cartão? Onde dormiria, como se alimentaria, sem a droga do cartão?

Entregou com tristeza sua única nota para a jovem que trabalhava no caixa. Ela ostentava um crachá no peito, mas não se deu ao trabalho de ler seu nome. A jovem devolveu dois reais, tudo o que lhe restava. Guardou o dinheiro no bolso, voltou para a rua, voltou para a multidão que o atravessava como se não existisse, como se fosse um fantasma empoeirado de tempos imemoriais que somente soltava gemidos para ninguém ouvir. Sentia-se só.

Resolveu andar até a casa dos pais. Era um caminho longo, demorou mais de uma hora para chegar. Parou em frente à casa, aquela construção alta e antiga de dois andares. De repente não queria mais tocar a campainha, não queria mais dizer quem era no interfone. Aproximou-se da porta alta de madeira, que o olhava com imponência. Suava, sentia-se nervoso em encontrar seus próprios progenitores, quase como se já soubesse o que iria acontecer. Seu dedo tremia tanto que teve dificuldade para tocar o interruptor. Quando finalmente acertou a mira, escutou o som que ecoava pelas paredes indiferentes da casa. Aguardou, apreensivo. Desejava nunca ter estado ali.

– Quem é? – A voz rouca e velha de sua mãe.

– Sou eu, mamãe.

Silêncio.

– Quem está aí? – A voz dura e forte de seu pai.

– Sou eu, papai.

– Saia daqui! Nunca tivemos filhos, seu vagabundo! Vai enganar outro! Cafajeste.

Abriu a boca para responder, mas as palavras não conseguiram sair. Não chorava há muitos anos, mas dessa vez não aguentou. As lágrimas caíam de seus olhos, fechando a sua garganta, dominando seu corpo e sua mente. Virou-se, tinha que sair dali, tinha que caminhar para longe, para algum lugar que não fosse aquele onde não o queriam. Andou com dificuldade, os pés pareciam sangrar a cada passo, apesar de não sair uma única gota de sua pele suada. As imagens estavam turvas pelas lágrimas, chovia, suas roupas estavam encharcadas, mas percebia isso tudo apenas levemente, como a brisa que toca nossa pele com seus dedos de seda. Adormeceu em um parque qualquer, em algum lugar qualquer da cidade.

Acordou no meio da noite. Não sabia as horas. O parque estava escuro e frio. Perdeu o sono. Levantou-se, mendigos roncavam a seu redor. Olhou para o céu estrelado, as estrelas sem nome o encaravam com fúria. Procurou o cruzeiro do sul, mas não o encontrou. Não existia nenhuma constelação naquele céu, apenas milhares de estrelas sem nome e sem rosto a percorrer os vazios de um universo infinito. Uma estrela cadente atravessou o espaço, vindo não se sabe de onde, indo para algum lugar qualquer.

Um vira-lata aproximou-se. O cão encarou-o por um longo instante, antes de inspirar profundamente, procurando fixar seu cheiro em sua mente canina. Afastou-se, então, rumo à escuridão do parque, talvez o único ser capaz de o reconhecer. Viu-se novamente só. Fechou os olhos e, num instante de desespero, tentou se lembrar de toda a sua vida, temendo tê-la esquecido.

Não havia esquecido. Talvez isso fosse o pior. Suas memórias a partir do terceiro ano em que caminhou por este mundo mantinham-se intactas em sua mente, dando-lhe todo o sentido de identidade que pode ter alguém que sabe seu nome, sua profissão, suas preferências, que conhece seus amigos, sua esposa, lembra algumas datas de nascimento e alguns telefones. Estava tudo ali, nas interconexões de seus neurônios, tudo o que o fazia ser quem acreditava que era. O que estava errado, então?

Andou até a fonte, olhou o seu rosto na água, iluminado pela luz anônima da lua. Os olhos, as bochechas, os lábios, o nariz, as sobrancelhas, as orelhas, o cabelo, o queixo, tudo igual àquela velha imagem que tinha de si mesmo, com exceção das movimentações suaves provocadas pelo eterno deslizar das águas, com exceção do despenteado de seus cabelos que seria sempre diferente do de qualquer outra imagem que já vira de si. Viu as lágrimas de seus olhos encontrando-se com as águas da fonte, misturando com as outras milhares de gotas e perdendo o sal que as caracteriza.

Sentou-se na grama, encostou a nuca no mármore frio. Fechou os olhos, tentando sentir o suave caminhar da noite, mas o barulho dos mendigos sem nome o incomodava. Levantou-se, olhou ao redor, viu vários mendigos iluminados pela luz da lua, adivinhou mais centenas perdidos na escuridão. Todos compondo aquela sinfonia da inconsciência, talvez a primeira música que jamais foi tocada pela humanidade. Caminhou lentamente pelo parque, mais bancos e mais mendigos entravam em seu campo de visão, enquanto os outros perdiam-se em sua memória. Mendigos gordos, exalando sons graves, mendigos magros, soltando agudos sons no ar. Mendigos pequenos, acompanhados de sons altos, mendigos grandes, mas cujo corpo deixava escapar o mais baixo dos sons. Caminhava e caminhava, sempre vendo aquela imensidão de mendigos ao seu redor, homens e mulheres, adultos e crianças, todos abandonados no parque, compondo-o como as árvores sem nome que os viam nas centenas de seus pacientes anos.

A perna começou a doer. O corpo apresentava seus sinais de cansaço. Sentia vontade de parar, de deitar-se, de abandonar-se na doce bruma da inconsciência. Mas todos os bancos estavam ocupados, todos os bancos por onde passava continham mendigos anônimos. Arrastava-se, carregava o seu próprio corpo a cada passo. Finalmente, próximo ao vira-lata que novamente dava o ar de sua presença, avistou um banco vazio. Havia uma palavra pichada no encosto do banco, mas não conseguiu ler. Talvez fosse o seu nome. Talvez não. Mas deitou-se naquele banco, vencido pela tristeza, vencido pelo cansaço. Fechou os olhos. Deixou os músculos relaxarem.

A lua iluminava o parque, onde ele era mais um entre os mendigos sem nome que compunham a mais antiga das sinfonias. Podemos vê-los todos, em toda a sua diversidade, em toda a sua homogeneidade, como se fossem estrelas, sem nome e sem rosto a percorrer os vazios de um universo infinito. O vira-lata ainda atravessa o parque, vindo não se sabe de onde, indo para algum lugar qualquer.